20 janeiro 2019

QUANDO A CHUVA PASSAR

Heraldo chegou em casa o sol havia nascido e seus raios, através das frestas da janela, invadiam o quarto bem arrumado e ainda podia sentir o perfume de Maria Luiza. Ela não estava em casa. Como todas as manhãs, acordava bem cedo, deixava a filha na creche e corria atrasada para o trabalho na repartição pública. Heraldo ficava pelo menos setenta e duas horas fora de casa, às vezes mais, quando as viagens eram mais longas, ou quando tinha que cobrir a falta de algum colega na Empresa de Turismo. Heraldo era motorista de ônibus, costumava fazer sempre a mesma viagem de uma capital à outra, sempre nas madrugadas, e estava bem acostumado com aquela rotina e também era bem quisto na empresa. O ônibus saía sempre à meia noite. Heraldo dirigia a madrugada inteira e chegava na cidade de destino pela manhã. Depois descansava até por volta do meio dia e dirigia novamente da cidade de destino até a cidade de origem, chegando à meia noite, pois na volta fazia escalas em cidades que ficavam no percurso. O percurso era sempre o mesmo e a empresa, precavida, dispunha de dois motoristas em todos os ônibus, para que pudessem revezar em caso de cansaço ou qualquer outro imprevisto. O trajeto sempre foi muito perigoso: Muita neblina, garoa e pistas irregulares, mas Heraldo sempre teve muito cuidado... Um excelente motorista. Ele trabalhava na mesma empresa fazia vinte anos e nunca havia tirado ferias como se devia e dizia que não conseguia ficar parado, sem trabalhar, tanto que nos dias em que ficava de folga, trabalhava com o taxi do irmão. Heraldo conhecia a maioria dos passageiros de suas viagens, assíduos, viajavam a negócios, por trabalho, estudos, pois existiam grandes empresas multinacionais e faculdades localizadas no percurso. Os passageiros ficavam tranquilos quando viam que era Heraldo quem estava ao volante do ônibus. Por outro lado, o relacionamento de Heraldo com Maria Luiza não andava bem fazia algum tempo. Ele vivia para trabalhar e ela, trabalhava para viver, pois a situação financeira do casal não era das melhores. Eles só se encontravam nos finais de semanas ou nos feriados em que por ventura Heraldo estivesse de folga. Apesar de todas as amarguras Heraldo amava muito Maria Luiza. No dia em que veio a separação definitiva, Heraldo tinha uma importante viagem onde levaria vários estudantes para fazer vestibular numa das universidades que ficava no percurso, no roteiro da viagem onde ele estava escalado como motorista. Apesar da situação conturbada que culminou na separação, Heraldo amava Maria Luiza e naquele dia todos perceberam em seu semblante uma terrível desilusão. A viagem iniciou-se pouco depois da meia noite e a previsão de chegada ao destino seria por volta das seis horas da manhã, horário suficiente para os estudantes se prepararem para a prova do vestibular que começaria por volta das nove horas. Entre os passageiros do ônibus estava Andressa. Andressa era muito conhecida de Heraldo e viajava sempre na primeira poltrona do lado direito e ficava basicamente ao lado do motorista. Heraldo e Andressa se conheciam viagens anteriores e ela sempre dizia que era muito tranquilo e agradável viajar com ele ao volante do ônibus. Naquele dia ele estava de poucas palavras face ao abalo por sua separação. Andressa entendeu e respeitou o sentimento do amigo motorista e permaneceu em silêncio durante a viagem. Ao se aproximarem da serra, uma neblina intensa fez com que Heraldo reduzisse a velocidade e andasse com mais atenção, tanto que pediu auxilio para o motorista reserva na orientação do percurso. Precavido, achou melhor parar o ônibus num recuo seguro quando começou uma chuva muito intensa. - Pessoal! Vamos esperar a chuva passar! Vou estacionar o ônibus neste recuo seguro – Disse Heraldo aos passageiros. A chuva demorou a cessar e chegou no limite de tempo em que a viagem teria de prosseguir de qualquer maneira para que os alunos/passageiros não corressem o risco de chegarem atrasados no destino e perderem a prova do vestibular. - Pessoal! A Chuva ainda continua intensa, mas temos que prosseguir! A visibilidade não era das melhores, e com toda sua experiência Heraldo dirigia o ônibus com a maior cautela e cuidado. Olhou pelo retrovisor e viu que os passageiros estavam calmos e tranquilos, muitos estavam dormindo, inclusive Andressa a quem Heraldo constantemente olhava. - Quando a chuva passar ficaremos mais tranquilos! A descida da serra era perigosíssima em dias normais, com visibilidade normal... Imagine com chuva e neblina! Heraldo por mais que tentasse tornar o ônibus dirigível, as curvas acentuadas na pista molhada e a baixa visibilidade fez com que o ônibus derrapasse várias vezes até capotar. Por sorte não caiu ribanceira abaixo. No momento do acidente Heraldo ainda percebeu que a maioria dos passageiros estavam dormindo. Ele ficou preso entre as ferragens do ônibus e até que o socorro chegasse não teve como mensurar o tamanho da tragédia, mas ouvia gritos, gemidos e pedidos de socorro. Chamou por André, o motorista reserva, mas ele não respondeu. Olhou para a poltrona onde Andressa estava sentada e só enxergou destroços. Chovia muito e isso dificultava o trabalho das equipes de resgate. Da ultima vez em que teve consciência, Heraldo reclamava que não estava sentindo sua pernas e chamava pelo nome, os passageiros mais conhecidos, sem resposta alguma. - Venha por aqui! - Não consigo me mexer! Alguém tentava prestar ajuda a Heraldo, que tentava a todo custo se desprender das ferragens. - Estou sentindo muitas dores! Estou sentindo muitas dores! Uma voz calma e tranquila, no meio daquela cena desesperadora, tentava guiar Heraldo para “um lugar seguro”, como a voz dizia: - Venha por aqui! Já existem vários que estão comigo! Estão seguros! - Mas quem é você? Você é do resgate? - Venha por aqui! Muitos já estão aqui comigo! Outros, infelizmente não foi possível! Assustado e sentindo muitas dores, Heraldo conseguiu se desvencilhar das ferragens e com muito esforço seguiu na direção em que ouvia uma voz chamá-lo sem cessar. - Entre Heraldo! Entre! Heraldo reconheceu quem o chamava e pedia para entrar: Era Andressa! Juntamente com algumas pessoas que estavam no ônibus que desgovernou e capotou. - Onde estão os outros? - Alguns foram resgatados e levados para os hospitais da região, outros, infelizmente não tiveram a mesma sorte que a nossa de conseguir entrar nesteônibus reserva”! Disse Andressa a Heraldo.Heraldo estava com o semblante assustado. Nem Andressa nem as outras pessoas estavam com qualquer escoriação e ainda ficou mais assustado quando percebeu que as fortes dores que estava sentindo havia cessado: - Nós vamos embora quando a chuva passar! Andressa repetia essa frase várias vezes, encostada na janela do “ônibus reserva” com a palma da mão direita estendida:- Nós vamos embora quando a chuva passar! Quando finalmente Heraldo percebeu o que havia ocorrido e o que estava acontecendo, chorou... Chorou e chamou por Maria Luiza. Depois sorriu, abraçou Andressa e as demais pessoas que estavam dentro do “ônibus reserva”, olhando a chuva cessar e um raio de luz brilhar no céu azul entre nuvens! - A chuva passou! Já podemos ir! Até um dia, Maria Luiza! Um dia vou chegar até você! Enquanto isso não vou parar de fazer a minha prece: Como vou chegar até você? Talvez voando, entre as nuvens, entre o céu é o amanhã. Quem sabe se eu rezar você possa aparecer e segurar na minha mão, como da última vez em que morri para te encontrar... Passarão os dias e as noites e se eu não achar o caminho, a chuva vai me levar. A chuva é sempre forte, os raios e os travões não me amedrontam mais, mas, mesmo assim, vou esperar a chuva passar... Paciente, para eu poder voar novamente entre as nuvens, pois na certa vou te encontrar e vamos para bem longe, para algum lugar... Porque eu te amo e a chuva vai passar. Vai passar!
ANTONIO AUGGUSTO JOÃO

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